Conversei com Amaury de Souza poucos dias antes da sua morte. Conversamos, sobretudo, sobre câncer, tema no qual sou veterano. Amaury enfrentava um dos cânceres mais agressivos que há, o do pâncreas. Influenciado pela minha história de convivência com um câncer de progressão mais lenta, que já completou 17 anos (desde o diagnóstico), resolveu que tentaria transformar o mal que o afligia numa doença crônica. Já tinha mudado a dieta, entrado num programa de exercícios. Iria consultar meus blogs sobre o câncer da próstata e ver o que poderia acrescentar ao seu tratamento e ao seu estilo de vida para transformar um câncer letalíssimo em uma doença crônica. Sua voz bonita e firme revelava seu caráter decidido. Poucos dias depois, li no e-mail notícia sobre a sua morte.
A estória de Amaury é a de um jovem brilhante e criativo, com mais do que uma ponta de cinismo, que viveu num período em que o mundo mudou. Parte de um privilegiado grupo de estudantes mineiros que transformaram a Ciência Política no Brasil, Amaury iniciou sua carreira combinando os estudos com o ativismo político. Foi, se bem me lembro, um dos fundadores da POLOP (Política Operária). Amaury não era imune às voltas e reviravoltas de um mundo que mudava aceleradamente.
Amaury era um ativista, sim, mas essencialmente era um acadêmico. Tive o prazer de ter Amaury como um dos alunos de um seminário que ofereci em MIT. Era um de três alunos mineiros que tiveram um impacto claro sobre a Ciência Política no Brasil. Completando o trio, lá estavam Fabio Wanderley Reis e Antônio Octávio Cintra.
Também tive a satisfação de ver Amaury usar dados que eu coletara nas eleições de 1960 e demonstrar que a cor influenciava a preferencia partidária e a intenção de voto além do status socioeconômico e da classe social. A significação dessa demonstração só se aquilata quando se considera que o pensamento político brasileiro era dominado pela “escola paulista”, que reduzia a influência da raça à classe social. Pensar diferente era enfrentar a ira da esquerda intelectual brasileira. Amaury enfrentou.[i]
Títulos? Não faltam. Doutor em Ciência Política pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), foi professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e de diversas universidades norte-americanas. Foi, também, bolsista do Woodrow Wilson International Center for Scholars. Seus últimos livros foram recentes: A Agenda Internacional do Brasil: A Política Externa Brasileira de FHC a Lula, em 2009, e A Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Novos Projetos de Sociedade, em 2010, escrito com outro mineiro da “safra de ouro”, Bolívar Lamounier.
Como ressalta Margolis, “Amaury era politicamente incorreto, às vezes ao ponto de provocar arrepios.” Quando o Brasil político era conservador, ele era líder radical de esquerda; quando a direita militar já não estava no poder, e, ideologicamente, a academia brasileira voltava às décadas de 60 e 70, e, teoricamente, se dedicava ao pós-modernismo “de esquerda”, Amaury era um dissonante, um liberal de carteirinha, que apresentava dados e números para alicerçar suas ideias.
Dada a minha história pessoal, é importante ressaltar a coragem de Amaury frente a morte. Mac Margolis nos relata que, mesmo em etapa adiantada da doença, fazia questão de viver como sempre viveu: “nos encontramos na Urca no bar a poucos passos da sua casa. Magro e fragilizado pela doença, Amaury fazia questão de estar ali, tomar chope, falar de livros … comentar o julgamento do mensalão e decifrar os rumos da política brasileira.”
Quando muitos vegetam, amedrontados, esperando a morte, Amaury viveu intensamente e inteligentemente até o fim. Seu último artigo foi publicado dois dias antes da sua morte.
GLÁUCIO SOARES IESP/UERJ
[i] O artigo pode ser lido em http://rae.fgv.br/sites/rae.fgv.br/files/artigos/10.1590_S0034-75901971000400007.pdf